Relógio da Terra

quinta-feira, 2 de abril de 2009

Josué de Castro e a Geografia da Fome

Aqui temos um trecho escrito por Josué de Castro, importante geógrafo, que retratou como ninguém o problema da fome. Em 1995, Silvio Tendler (que também fez um filme sobre Milton Santos) traz um pouco da trajetória desse grande intelectual em um filme muito interessante.


HOMENS E CARANGUEJOS



Nas terras pobres e famintas do Nordeste brasileiro, onde nasci, é hábito servir-se um pedacinho de carne seca com um prato bem cheio de farofa. O suficiente de carne — quase um nada — para dar gosto e cheiro a toda uma montanha de farofa feita de farinha de mandioca, escaldada com sal. Foi, talvez, por força deste velho hábito da minha terra que resolvi servir ao leitor deste livro muita farofa com pouca carne.

Sentindo que a história que vou contar é uma história magra, seca, com pouca carne de romance, resolvi servi-la com uma introdução explicativa que engordasse um pouco o livro e pudesse, talvez, enganar a fome do leitor — a sua insaciável fome de romance. Foi, no fundo, como uma espécie de sublimação deste complexo de um povo inteiro de famintos, sempre preocupado em esconder ou, pelo menos, em disfarçar a sua fome eterna, que acabei fazendo uma copiosa introdução a este magro romance que tem, como personagem central, o drama da fome. Assim, por força das circunstâncias, encontrará o leitor, neste livro, muita explicação e pouco romance. Pouco, mas o suficiente para dar ao livro o gosto e o cheiro fortes do drama da fome que é, no fundo, a carne desta obra.

Mas será mesmo este livro um romance? Ou não será mais um livro de memórias? Talvez, sob certos aspectos, uma autobiografia?

Não sei. Tudo o que eu sei é que, neste livro, se conta a história de uma vida diante do espectáculo multiforme da vida. A história da vida de um menino pobre abrindo os olhos para o espectáculo do mundo, numa paisagem que é, toda ela, um braço de mar — um longo braço de mar de misérias.

O tema deste livro é a história da descoberta da fome nos meus anos de infância, nos alagados da cidade de Recife, onde convivi com os afogados deste mar de miséria. Procuro mostrar neste livro de ficção que não foi na Sorbonne, nem em qualquer outra universidade sábia, que travei conhecimento com o fenómeno da fome. O fenómeno se revelou espontaneamente a meus olhos nos mangues do Capibaribe, nos bairros miseráveis da cidade do Recife: Afogados, Pina, Santo Amaro, Ilha do Leite. Esta é que foi a minha Sorbonne: a lama dos mangues do Recife, fervilhando de caranguejos e povoada de seres humanos feitos de carne de caranguejo, pensando e sentindo como caranguejo. Seres anfíbios — habitantes da terra e da água, meio homens e meio bichos. Alimentados na infância com caldo de caranguejo: este leite de lama. Seres humanos que se faziam assim irmãos de leite dos caranguejos. Que aprendiam a engatinhar e a andar com os caranguejos da lama e que depois de terem bebido na infância este leite de lama, de se terem enlambuzado com o caldo grosso da lama dos mangues, de se terem impregnado do seu cheiro de terra podre e de maresia, nunca mais se podiam libertar dessa crosta de lama que os tornava tão parecidos com os caranguejos, seus irmãos, com as suas duras carapaças também enlambuzadas de lama.

Cedo me dei conta deste estranho mimetismo: os homens se assemelhando em tudo aos caranguejos. Arrastando-se, acachapando-se como os caranguejos para poderem sobreviver. Parados como os caranguejos na beira da água ou caminhando para trás como caminham os caranguejos.

É por isso que os habitantes dos mangues, depois de terem um dia saltado para dentro da vida, nesta lama pegajosa dos mangues, dificilmente conseguiam sair do ciclo do caranguejo, a não ser saltando para a morte e, assim, afundando-se para sempre dentro da lama.

A impressão que eu tinha era que os habitantes dos mangues — homens e caranguejos nascidos à beira do rio — à medida que iam crescendo, iam cada vez se atolando mais na lama. Parecia que a vegetação densa dos mangues com seus troncos retorcidos, com o emaranhado de seus galhos rugosos e com a densa rede de suas raízes perfurantes os tinha agarrado definitivamente como um polvo, enfiando tentáculos invisíveis dentro da sua carne, por todos os buracos de sua pele, pelos olhos, pela boca, pelos ouvidos.

E, assim, ficavam todos eles afogados no mangue, agarrados pelas ventosas com as quais os mangues insaciáveis lhes sugavam todo o suco da sua carne e da sua alma de escravos. Com uma força estranha, os mangues iam, assim, apoderando-se da vida de toda aquela gente, numa posse lenta, tenaz, definitiva. Estas estranhas plantas que, em eras geológicas passadas, se tinham apoderado de toda essa área de terra — esta fossa pantanosa onde hoje assenta a cidade do Recife — estendia agora sua posse também aos seus habitantes. E tudo nesta região passava a pertencer ao mangue conquistador e dominador: a Terra e o Homem.

Na verdade, foram os mangues os primeiros conquistadores desta terra. Foram mesmo em grande parte os seus criadores. Toda esta vasta planície inundável, formada de ilhas, penínsulas, alagados e paúis, fora em tempos idos uma grande fossa, uma baía em semicírculo, cercada por uma cinta de colinas. Nela vindo a desaguar, através da muralha dessas colinas, dois grandes rios — o Capibaribe e o Beberibe — foram entulhando a fossa com materiais aluvionais: com a terra arrancada de outras áreas distantes e trazida na enxurrada das suas águas. Pouco a pouco foram surgindo, dentro da baía marinha, pequenas coroas lodosas, formadas através da precipitação e deposição dos materiais trazidos pelos rios. E foi sobre estes bancos de solo ainda mal consolidados, mistura incerta de terra e água, que se apressaram a proliferar os mangues — esta estranha vegetação capaz de viver dentro de água salgada, numa terra frouxa, constantemente alagada. Agarrando-se com unhas e dentes a este solo para sobreviver, através de um sistema de raízes que são como garras fincadas profundamente no lodo e amparando-se, umas nas outras, para resistirem ao ímpeto das correntezas da maré e ao sopro forte dos ventos alísios, que arrepia sua cabeleira verde, os mangues foram pouco a pouco entrelaçando suas raízes e seus braços numa amorosa promiscuidade, e foram assim consolidando a sua vida e a vida do solo frouxo das coroas de lodo donde brotaram. Com os depósitos aluviais que se foram acumulando na trama do labirinto de raízes dos mangues e debaixo das suas copadas sombras verdes, foi progressivamente subindo o nível do solo, e alargando sua área sob a protecção desse denso engradado vegetal. Não há pois, a menor dúvida que toda esta terra que hoje flutua à flor das águas, na baía, entulhada do Recife, foi uma criação dos mangues.

Os mangues vieram com os rios e, com os materiais por eles trazidos, foram os mangues laboriosamente construindo seu próprio solo, batendo-se em luta constante contra o mar. Vieram como se fossem tropas de ocupação e, ao contacto com o mar, edificaram, silenciosa e progressivamente, esta imensa baixada aluvial hoje cortada por inúmeros braços de água dos rios e densamente povoada de homens e caranguejos, seus habitantes e seus adoradores. ...,... (de: Prefácio)

14 comentários:

Mandy' disse...

Não sei o que comentar aqui.
Apenas entendi que o Josué de Castro foi um homem que vivia em Recife, e escreveu um livro retratando a fome como uma forma de chamar a atenção da política para esse fato.
Era isso!

Blue bird disse...

O documentário retrata a vida e os ideais de Josué de Castro. Dentro dos seus vários subtítulos: “Josué do mangue”, “Josué da fome”, “Josué do Mundo”, o documentário retrata um dos maiores problemas da humanidade: a fome.
Josué de Castro escreveu vários livros que discutem a questão da fome. Ele já representou o Brasil internacionalmente em distintos órgãos e acabou sendo exilado do nosso país pela ditadura militar.
São entrevistados, no documentário, diversos intelectuais de distintas áreas, como: geógrafos, sociólogos, compositores e até mesmo a filha de Josué de Castro.
O documentário traz uma analise e uma compreensão direta dos ideais e da obra do médico Pernambucano: Josué de Castro.

Guilherme Medeiros disse...
Este comentário foi removido pelo autor.
Guilherme Medeiros disse...

O documentário se trata de intrevistas de vários intelectuais de vários países e várias áreas, os quais falam um pouco sobre a vida e a obra de Josué Castro.
De acordo com o documentário podemos notar que Josué foi uma figura importantíssima no entendimento da fome nacional e global.
Em sua vida, Josué de Castro escreveu vários livros que retratam o problema da fome.
Podemos notar a gigantesca importância de Josué no documentário também pelo fato de grandes nomes da geografia,da sociologia, e de outras áreas falarem sobre ele e sobre seu trabalho, como por exemplo o célebre Milton Santos.
Um ponto interessante do documentário é a intrevista com sua filha, como a companheira Ornella fala acima.
E pelos fatos apresentados no documentário, podemos dizer que Josué de Castro é uma das figuras mais importantes para o o compreendimento da fome global.


'Guilherme

Felipe disse...

Teste

karine disse...

Josué de Castro foi um cara muito importante na geografia, no filme falava que ele foi um homem admirável, intelectual, que buscava a paz, falava também que ele escreveu um livro chamado geografia da fome (descoberta da fome no Brasil),onde fala que a fome é um problema econômico e social,este livro foi muito importante pois fez as pessoas olharem a fome no Brasil por outros aspectos, em fim o filme foi muito bom,interessante e bastante instrutivo!!!demorei, mais postei professor hihih \0/

Mariane Kammers disse...

Não vi o filme, pois nao pude ir na aula aquele dia, mas o que eu pude enterder do trecho postado no blog, é que Jusué de Castro é muito realista e retrata muito a fome, que é um outro problema muito serio da humanidade.
Segundo ele toda a abundancia que temos na terra levou a miseria e a fome, a terra deu os frutos mas o homem nao soube cultivar, ele compara os homens com os carangeuijos pois estao cada vez andando mais para tras, e é o homem quem escolhe seu caminho.

Angélica disse...

Não pude ver o documentário, mas, pela leitura do post entendi que Josué de Castro relata a miséria no nordeste. Gostei da forma como escreveu, usando a analogia da farofa e da carne, mostrando nua e crua a realidade da fome.

Karen Hemi disse...

(Josué de Castro, um geógrafo, medico, professor, escritor, sociólogo e político.
Lutou contra a fome no mundo inteiro. Para ele essa luta era um objetivo de vida e retratou toda a miséria que via em seus livros.
Naquela época as idéias de acabar com a fome de Josué de Castro não era bem vista pelo governo militar, por acharem que fossem ‘‘comunistas''. O tema 'fome' era um tema bem pouco abordado para ser discutido.
Quando ele publicou suas idéias, ganhou mais prestigio no mundo inteiro. Foi onde teve seu lugar na presidência da Organização das Nações Unidas para Agricultura e Alimentação e outras homenagens.
Um país subdesenvolvido não quer dizer: tem que haver miséria e fome. O desenvolvimento de um país é baseado na sua economia e o bem estar da população é questão de humanidade.
A fome é causada pelas escolhas sociais e não por, não ter onde produzir.
O Brasil produz e muito, mas a má distribuição desses alimentos não chega onde menos se produz o necessário. E isso atinge a parte da população mais opressa e com expectativa de vida baixa.)
Isso foi o que eu entendi das ideias de Josué de Castro. Que foi tanta coisa e fez tanto pelo no Brasil e pelo mundo também, mas ainda hoje lutamos contra a fome, a má distribuição de terras e esses politícos que estão no governo apenas para receber, roubar
e viajar de avião.

Renata disse...

Achei o documentário muito interessante...
Josué de Castro dedicou seu tempo para chamar a atenção para o problema da fome e da miséria. Ele pode entender que a fome estava presente na vida de grande parte da população brasileira e do mundo.
Além a fome, Josué também estudou questões de interesse global que estão relacionadas com o meio ambiente, a paz e a pobreza.
Um homem que ainda hoje é admirado por muitos, que compartilham os mesmos pensamentos e criticam os mesmos problemas, que agora estão cada vez mais aparentes e perto de todos nós.

Priscila disse...

Josué de Castro retrata em seu documentário, nada mais do que a triste realidade da miséria e da fome que se localiza em todo o Brasil, mas principalmente no nordeste, e de certa forma critica o homem por ser responsável por esse acontecimento.

Unknown disse...

o filme mostra a o relato de Josué de Castro sobre a fome, só achei no filme que mostrava mais o pensamento de outras pessoas sobre Josué de Castro do que ele mesmo...
mas seus ideais são bem formados e sua analogia é muito boa.
desculpa pela demora

Luiz Henrique disse...

Josoé De Castro é um ótimo representante brasileiro perante o mundo, pois com seu trabalho detalhado sobre a fome mundial,importânte para alertar o mundo sobre o descaso que acontece nos paises subdesenvolvidos, inclusive para brasileiros, que nos faz ver o como existe pessoas que passa por situações que acontecem no mundo inteiro e que as vezes passa desapercebido pelos olhos que não passa por uma cituação como essas.

Anônimo disse...

Não vi o documentario todo, pra falar a verdade vi só um pedaço. Mas pelo que eu entendi o documentario é uma crítica ao modo de produção dos alimentos e a sua distribuição, nos dias atuais.